agora eu ouço os sabiás
À primeira vista e apressadamente poderíamos situar as práticas artísticas de Valéria Scornaienchi na longeva cronologia das relações entre a História Natural e a Arte, afinal seu processo envolve coletas em contextos naturais e a escolha de trabalhar, preferencialmente, com esses materiais. Portanto sua matéria-prima é a natureza. Entretanto suas andanças, coletas e desenhos em nada se aproximam dessa tradição histórica, tampouco Scornaienchi se relaciona com pétalas, folhas, sementes e raízes para somar sua voz ao coro de tantos artistas que trabalham com a natureza para incorporar em suas obras os discursos da denúncia urgente, e necessária, dos crescentes desafios ecológicos do nosso tempo.
Suas aproximações e coletas não envolvem pesquisas de campo, catalogações de espécies ou discussões sobre botânica. As obras e situações criadas por Valéria Scornaienchi nos convocam a uma pausa e a um adentrar além do epidérmico, da superfície da leitura visual. Sua pesquisa parte do cansaço infinito da interminável busca de sentido e o que ela propõe é que o nosso pensamento se aninhe agora em múltiplas subjetividades, reverberando em outras linhas do tempo e Histórias, não apenas da humanidade, e sim de todos os seres, uma história que abarque toda a vida do mundo. Para ela, conhecer é dar fluxo, curso e movimento a cachoeira de enunciados imprevistos, imprevisíveis, novos em ser, na construção de uma poética prazerosa e impermanente.
Trabalhos que propõem narrativas afetivas, que reavivam memórias distantes e que tecem novas tramas e inventários para futuras lembranças. E que acabam por se constituir em arquivos afetivos temporários – porque a matéria orgânica sempre decai, espelha e sublinha os limites da vida. Em sua prática, Valéria propõe maneiras de reconsiderarmos nossas relações com as espécimes botânicas e o mundo natural, contestando as conexões das artes visuais informadas e reduzidas pela tradição da pintura naturalista e, consequentemente, a serviço do colonialismo, do imperialismo e da exploração dos recursos naturais.
O afeto é a chave de leitura para a compreensão do seu fazer, e elemento furtivo, conceitual, que costura o sentido de suas ações artísticas.
Moacir dos Anjos, ao analisar a série de Coletas produzidas por Brígida Baltar entre os anos 1994 e 2000, enuncia que “as coletas são ações individuais que deixam, em quem as faz, rastros sensoriais de um momento e de um lugar precisos (temperatura, sons, cheiros) e impressões transientes de estados de sentimento (prazer, medo, melancolia), marcas impossíveis de partilhar plenamente com alguém
mais.” E são exatamente os rastros de um momento e de um lugar preciso que nos trazem a esta mostra, que se constitui de referências, encontros, trocas, sentimentos, desenhos, fotografias e coletas realizadas no território expandido do Mirante Xique-Xique, no povoado de Igatu, localizado no contexto da reserva ambiental do Parque Nacional da Chapada Diamantina.
Práticas dotadas de um conhecimento interior, de uma proximidade com os recursos naturais. Em Baltar, aparatos encerram o mundo natural. Enquanto que a escrita e o desenho são as ferramentas de aproximação e moldura para a gramática de elementos da natureza de Scornaienchi. Em suas coletas, a experiência do tato se sobressai, é preciso se concentrar na granulação e na textura das folhas, no sentimento de contato entre o pigmento natural, ora seco, ora oleoso, com o qual ela executa suas pinturas. A umidade das aguadas e também dos materiais naturais que secam em contato com a folha de papel.
A audição também ganha relevo, metaforicamente e concretamente. De dentro para fora e de fora para dentro, em duplo movimento.
A voz da artista tem tom sereno, como só poderia ser para alguém tão cuidadosa e madura no trato do mundo, como não poderia não ser, para quem se abre com tanto afeto à experiência do outro, dos não humanos, da natureza e dos materiais. Ouvir, como o título da mostra enfatiza, é atitude diante do mundo cada vez mais rara. É dedicar atenção e tempo ao outro, a toda vida que nos cerca, para além das mazelas e desejos do eu. É frear o julgamento e embarcar na singular experiência de participar de tudo que nos alcança.
Seu processo de trabalho traduz o que Tim Ingold descreve como: um processo de crescimento. Desde o início de sua prática plástica, de fabricação, Valéria atua como participante entre os materiais ativos do mundo. “Materiais com os quais ela tem de trabalhar, e no processo de fabricação ela 'junta suas forças' com eles, unindo-os ou separando-os, sintetizando e destilando, em antecipação do que possa emergir.”
Portanto o que distingue as práticas artísticas de Scornaienchi é a extensão de seu envolvimento com os materiais na geração das formas que produz. A exposição é um convite ao mergulho em um processo, no diário da artista. Que nesta mostra se apresenta ampliado e toma a forma de um ambiente imersivo. Uma grande instalação na escala do espaço, especialmente criada para a galeria da FAV, na Universidade Federal de Goiás. Aqui Scornaienchi compartilha sua etnografia de histórias cotidianas, que cruza desenho direto nas paredes, com folhas naturais, perecíveis, ramagens e raízes, somada a recortes de fotografia em diferentes formatos e suportes, além de bordados e objetos apropriados, resultado de encontros relevantes ocorridos durante a experiência na residência artística do Mirante Xique-Xique.
Mais desenhos, agora retroiluminados, que fundem frente e verso do papel, gerando figuras fantasmáticas que não podemos decifrar com tanta facilidade. Eles também escondem ou revelam caligrafias que flutuam pelas paredes sem pautas da exposição. Ah... e os cantos dos sabiás, uma pesquisa sonora que pontua a singularidade de cada timbre dessa abundante família de pássaros que habita todo o nosso território. Eles se espalham na instalação disfarçados em QR codes.
A escrita das paredes desta mostra é a instância mais íntima de expressão da artista que tenta sedimentar acontecimentos e emoções, registrar seus deslocamentos no território e em seu mundo interior. E assim, inicia conversas, dispara perguntas, na busca de acolher observações e opiniões do visitante-leitor sobre os seus dias na comunidade de Igatu. Lá, ela caminhou com a mestre Tuninha, liderança local, generosa e disponível, artesã que manufatura mandalas e flores feitas de folhagens recolhidas no Parque Nacional. E foi através desse encontro, dessa confluência, que Valéria pode reconhecer e celebrar a convergência de processos guiados pelo livre exercício da criatividade com os materiais naturais.
Agora Eu Ouço os Sabiás é um espaço que reivindica envolvimento e um vagar tranquilo, que nos convoca a repensar nossa relação com o tempo e a produtividade.
É preciso sentir o tato através dos olhos e escutar os pássaros que alçam voo das páginas de seu diário afetivo. A poética da artista convida a um demorar-se nos detalhes, a seguir as linhas traçadas na parede, que se somam aos campos de cores, sobrepostos por palavras, bordados e fotografias, talvez com o desejo de dar pistas aos visitantes sobre os meandros de seu rico mundo interior. Ou talvez para que todos nós partilhemos da atmosfera dessa região remota do Brasil, onde ainda é possível dedicar tempo as conversas com os vizinhos, a um relaxante banho de rio ou simplesmente ouvir o canto dos sabiás.