Vermelho Brasa
Das cinzas, outros brasis
A intensa exploração de ibirapitanga – o pau-brasil – no início da invasão portuguesa, para além de representar a primeira atividade comercial predatória exercida por Portugal no início da colonização de nosso país, evidenciou a presença do vermelho em nossa história, dos primórdios à atualidade, de formas distintas e marcantes. “Brasil”, “cor de brasa”, “vermelho das brasas” ou simplesmente “vermelho”, daria nome à árvore e, posteriormente, a essa terra. Um batismo que traz, também, violência em seu nome.
Concentrada na região da Mata Atlântica, a exploração do pau-brasil foi conduzida pelo interesse em sua madeira e, sobretudo, pela extração de sua resina avermelhada, apropriada à produção de corantes que agradavam os desejos europeus. Entretanto, não diferente de outros processos de colonização que fatiaram o mapa mundi com processos de apagamentos, violência e destruição, sua exploração levou a árvore a um processo de quase extinção e, no caso da nossa relação com o meio ambiente, a um contínuo processo de devastação.
Desde a invasão, o vermelho banhou, também, milhares de corpos indígenas genocidados. Por fetichização e desrespeito por outros seres e espécies, lavou animais silvestres e seus habitats naturais. Como brasa, o mesmo vermelho transformaria nossas matas e florestas em terras arrasadas. Desde sempre, essa coloração recobre nossa história e memória: o vermelho tinta é também constante vermelho sangue. De 1500 até os dias atuais, boiadas passam e processos de devastação e desalento sucumbem nossa fauna e flora.
Tais reflexões mobilizam a produção da artista Camila Moreira na mostra Vermelho Brasa. Ao propor uma mirada à destruição da Floresta Amazônica, um dos maiores biomas do nosso país e do mundo, a artista lança questionamentos sobre o dia seguinte, sobre qual legado deixaremos às próximas gerações. Àqueles e àquelas que virão, que terra irão herdar? Que futuro germinará? Tal processo de devastação legitimado pela grilagem, pelo especismo, pelas queimadas criminosas e pelo desapreço à democracia e ao patrimônio brasileiro nos situa num estranho lugar – não raro – de indiferença e desinteresse pela realidade das coisas. Até onde a vermelhidão me toca?
Apresentando uma série de obras, a artista lança mão de proposições como desenhos, pinturas, vídeos e instalações, nos colocando frente a imagens sobre nossa fauna e flora ameaçadas de extinção. Da fragilidade das obras, em materiais efêmeros e impermanentes, as imagens que Camila Moreira nos propõe em suas amarras, tramas, costuras e colagens de fragmentos de textos e diversos materiais, constantemente perpassados pela cor vermelha, demandam uma tomada de posição. Uma posição de respeito à ancestralidade que nos conecta com essa terra para, nela e por ela, mirarmos possibilidades de uma terra viva, de respeito e comunhão com a natureza, nosso bem maior. Um olhar no espelho que propõe reflexões sobre nosso posicionamento frente à devastação da natureza, à destruição de um bem comum universal, que muito nos diz sobre nossa forma de ser e estar no mundo, um estado passivo e de inércia que demanda atitude. Nas palavras da artista, “a exposição se propõe com um suspiro, uma brisa que espera e deseja que algo mude em muito breve”.
Ainda que as queimadas não-naturais promovam extinções desequilibradas e empobrecimento dos solos, as queimadas naturais podem contribuir com processos de renovação dos solos e da vida. Que da devastação saibamos nos levantar em floresta, como mata fechada, fortaleza de natureza impenetrável. Que dessas brasas, germinem outros brasis.
Sandro Ka