Desenhos a Iemanjá
AOS OLHOS, O CORPO
Luis Arnaldo
Bem pode ser que uma exposição oferecida à Iemanjá parta de um pretexto. Contudo, ao predicá-la assim, não se quer com isso escalonar assuntos segundo seus valores idiossincráticos, tampouco encobrir algo. Muito menos é essa uma escolha ocasional, aleatória ou contingencial. Sublinhemos tratar-se igualmente de uma exposição de desenhos – assunto caro às artes plásticas. Portanto, longe de ser um subterfúgio, é um ponto de partida, que, fazendo o uso da analogia, quer salientar um aspecto significativo do desenho, a saber, sua potência em nos guiar à experiência do invisível.
Em uma galeria de arte, ao nos depararmos com um simples recipiente contendo água e pigmento, não é precisamente o invisível que nos é revelado tanto quanto somos colocados em confronto direto com ele. O que nos aguarda é a matéria, já não tão crua, após ter sido animada por alguma ação (INGOLD, 2022a, p. 138). E, porque já transcorrida a ação, a matéria, em seu estado decadente, está apta a oferecer a possibilidade de que a reencenemos. Faz-se, portanto, bastante viva, ao contrário do que possa aparentar seu estado inerte.
Sabemos, há muito que o desenho não é o único meio para reproduzir o visível. Foi-se o tempo em que ele era instrumento exclusivo para tornar o mundo conhecido; instrumento exclusivo para representar o inexistente e dar concretude às ideias. Em meados do século XIX, a fotografia, ou o desenho fotogênico, como inicialmente era chamada, depôs seu trono (IVINS, 1975, p. 174)0. Propunha-se uma outra visão de mundo centrada na objetividade das informações e na autenticidade dos fatos (IVINS, 1975). O que fazer, então, com o invisível? Poderia o fotográfico dar carne ao além? Desde a invenção da câmera, essa é uma disputa acirrada. Sob o regime de um contrato em que a imagem é a contraparte do desenho (INGOLD, 2022a, p. 166), dois paradigmas parecem se opor.
No momento em que escrevo este texto, a série desenho de submersão ainda não é palpável. Será indispensável aos artistas cruzarem o Centro-Oeste brasileiro. Seu estado é de projeto. O que significa dizer que sua realização está condicionada à tamanha descrição de sua estratégia de ação, a ponto de ser suficientemente capaz de disparar em mim imagens que lhe deem forma. Sabemos, sua fatura está também subordinada à contingência da vida, podendo, portanto, sofrer desvios naturais do que é vivo (PORTO, 2017). Daí sua passagem, da ideia para a carne, poder ser diferente tanto do que pretendem os artistas quanto do que projeto em meu imaginário. Natural que, com isso, seu conteúdo discursivo possa, na mesma medida, ser alterado. Assim, estou diante do invisível. Mas não só eu. Corremos, todos, riscos, pois a matéria é mesmo incontornável. O que tenho são imagens mentais, mais ou menos moventes, construídas sob a influência daquelas outras tantas que me habitam, vindas de experiências passadas ou trazidas por aquelas infinitas que incessantemente mediam, hoje, nossa relação com o mundo, o tempo todo (SUBIRATS, 1989; 1993). Isso posto, ao ler desenho de submersão, projeto dois corpos que percorrem uma das margens de um ribeirão em trecho urbanizado de Goiânia. Eles carregam, estendido, um conjunto de folhas brancas de papel, grandes e retangulares feito lençol. Movimentam-se por um caminho de chão batido, ladeado por alguma vegetação rasteira. Na margem oposta, e ao fundo, uma mata ciliar mais densa, com árvores costeiras, de grande porte. Em dado momento, ao encontrarem a água, deitam-se os papéis no solo exposto. Sobre o primeiro deles é despejado algum pigmento azul em pó. Pede-se licença. Descalços, com as barras de suas calças dobradas, eles adentram o ribeirão calmamente. Suas mãos carregam o papel estendido tal qual foram conduzidos até ali. Voltados, um de frente para o outro, se entreolham. Enquanto um deles se curva ligeiramente para frente, o outro se abaixa completamente, submergindo apenas um terço da superfície do papel. É breve esse tempo de submersão. Mas longo o suficiente para que eu possa ver o fluxo da água sendo interrompido; para que eu posso sentir as calças sendo molhadas e reparar no barro do leito revolto ao ser pisoteado, turvando as águas. É tempo breve o suficiente para que o rio inunde a aspereza do papel e o impregne com alguns de seus resíduos: talvez alguma folha, algum diminuto ser vivo, certamente um pouco de seu minério. Em troca, as águas são parcamente coloridas, levando consigo alguma parte do pigmento azul. A atenção que disponho ao olhar para o pigmento sendo dissolvido me faz perceber que ainda resta alguma translucidez nessas águas. Vejo suas pedras, seu fundo assoreado, e retorno, rapidamente à superfície, onde imóvel está o verde reflexo da vegetação da margem. O desenho aconteceu (BARTHES, 1979). Ele, então, é recolhido e posto a secar à margem do ribeirão. Alguma sujidade ocre da encosta o contamina. Junto dele, também descansam resíduos humanos: um plástico de bala meio enterrado, uma latinha de refrigerante amassada e desbotada, uma ponta de cigarro. Esse mesmo procedimento, em cadência contínua, é repetido com todos os demais papéis. Um acontecimento sem qualquer espetáculo, para uma plateia pequena, sob um céu pouco nublado, em que se ouve o murmurar das águas, eventualmente, aqui e ali, um pássaro e sons antrópicos: sussurros de conversas, um distante trânsito de carros. No mais, apenas silêncio. Olhos atentos. Imagino, alguma câmera de celular registra tudo. Dali, os desenhos, ainda úmidos, são levados sem qualquer protocolo específico ao espaço expositivo, ávidos para serem vistos. Mas ver precisamente o quê se todas essas imagens que lhe deram forma não estão lá. Ou será que estão?
Cabe lembrarmos, desenho de submersão ainda não existe apesar destas imagens. Num futuro próximo, eles conterão os indícios de uma paisagem que reclama sua descrição. Eis que, então, outra questão se interpela: seriam tais desenhos já existentes embora imateriais? Ao que argumenta a datada arte conceitual e corrobora a filosofia da arte, a existência de um trabalho de arte independe de sua realização material. Nesse sentido, um texto descritivo é suficiente para tornar tais desenhos factuais. Será? O que pode provocar a mais o confronto do corpo observador com o corpo do desenho?
Um jogo semelhante entre o visível e o invisível também aparece em lançar. Subjaz a esta animação e aos desenhos que lhe deram forma, a série começo do caminhar para dentro de algum lugar, o registro fílmico de uma ação que, ao cabo, não nos é dado a ver. Em cena, uma paisagem marítima. Com as pernas semi-submersas, um dos artistas adentra o campo, lança flores brancas ao mar e se recolhe. O outro registra a ação por detrás da câmera do celular e, fora do campo, acompanha o movimento de oferenda. Deste curto vídeo originário, o que resistiu nos trabalhos não foram propriamente suas imagens estas ao prestarem foram propriamente suas imagens. Estas, ao prestarem-se ao desenho, renunciam de seu compromisso com um passado documental (BARTHES, 2006) e, feito partituras, se lançam ao eterno retorno de fazer viver o presente. Resistiu, sim, algo de sua anatomia: os limites espaciais e temporais da cena, e, sobretudo, sua mecânica: os fotogramas, a sequência de quadros, o movimento, a luz e a projeção. São estes últimos - elementos nada tradicionais ao desenho. Porém, abocanhados e pervertidos por ele, insurgente que é, para poder escancarar sua microscopia, à revelia do que pode ser ou quer dizer sua figuração. Ora, pois se a figura, barulhenta, já está posta – as nuvens, a mulher, os bancos de areia, as águas do mar, as flores –, não é nela onde mora o mistério; não é aí onde o trabalho se faz mais agudo; onde seu conteúdo se torna discurso. Mas será onde só em silêncio e proximidade se pode enxergar: seja no grão do grafite sobre a porosidade do papel – no vocabulário de gestos que o habitam –, seja em sua contraforma: nos corpos que operaram o desenho. Pude acompanhar uma sessão de começo do caminhar. Uma imagem videográfica, para dentro de algum lugar um frame, é projetada sobre. Uma imagem videográfica, para dentro de algum lugar um frame, é projetada sobre uma folha de papel fixada à parede. Ao longo de cerca de uma hora, os artistas, sentados, debruçam-se na parede. E, com distintas graduações de lápis grafite, revezam entre traçar linhas e preencher manchas de diferentes valores. Para alcançar os tons de cinza da imagem, varia-se apenas a intensidade da pressão que os dedos exercem sobre o lápis contra a folha. Trata-se de uma mecânica por contato, literalmente física, muito diferente daquela do fotográfico. O desenho é tributário da ação que um corpo exerce com uma matéria sobre uma superfície. Ao longo do tempo, os gestos são silenciosos. Para quem assiste, seus corpos, harmônicos, frequentemente se fundem a um só. Instaura-se uma comunicação tácita entre eles e deles para com a imagem projetada. É a luz quem guia a ação. São os olhos fotossensíveis, não o papel. E as mãos respondem a eles. Eu já habitei esse lugar e sei que embora a luz faça ver é ela também quem cega. Não precisa passar muito tempo com os olhos abertos para que eles logo se cansem e a figura que antes era certa - se mostre confusa. Nos deparamos com um embaraça do de pixels de tonalidades muito próximas que figuram absolutamente nada. Eis aí, então, o acesso ao desenho. A tentativa de fugir da estratégia de ação, o mapeamento de manchas, e se orientar pelo o que se supõe conhecer da forma, irá gerar resultados de estranhamentos. Cabe-se manter preso ao procedimento, desenhar tão somente, para que a figura, ao cabo, possa existir sem se esfacelar.
Do lado de lá, aos olhos de quem assiste à sessão, nada disso transpassa. Por vezes, parecem estar apenas consumindo tempo sem realizar absolutamente nada. A cena é quase estática. Somente os pés e pernas, aqui e ali, se reconfiguram. Ajeitam-se as colunas, movem-se os quadris. Cabeças estáveis. As mãos e dedos seguem trabalhando. Um fibrilar incessante. O desenho, em princípio, está velado pela imagem, mas seus limites não se subordinarão a ela. Percorro o teto com o olhar. A monotonia nos faz buscar outros assuntos: micro-acontecimentos. Reconheço o sutil oscilar dos corpos ao respirarem. Suas roupas e sapatos. Os bancos. O copo de água no chão ao lado. O revestimento do piso. O projetor. As sombras dos corpos projetadas na parede. Os cantos da parede. Em meio ao breu, percebo uma nuance de cor vinda do jardim, lá fora, cuja luz adentra a fresta da porta. Ouço um som de pássaro. Eu me situo. E, à medida que a ação insiste, o espaço do desenho extrapola o limite do papel. Passa a tomar toda a - superfície da parede. Em pacto com a intimidade daqueles corpos, percebo trocas de olhares que dizem de algum incômodo. As áreas confortáveis parecem ter sido preenchidas. Levantam-se, acomodam-se novamente em outras posições. Sempre contra a parede. Os corpos se movimentam em busca de um encaixe mais cômodo entre eles e a imagem para trazer à tona o desenho. Vê-se, repentinamente, um relevo dançante que se projeta para o lugar do ateliê. A essa altura, o desenho não é tão somente aquilo que se inscreve na superfície, mas o próprio ato de desenhar: a ação contínua e movente dos corpos. Meus olhos esforçam-se na tentativa de ver o que é deixado como rastro na folha, por entre a opacidade das ações dos desenhistas: seus gestos, poses e trocas de lugares. O brilho metálico do grafite, enfim, reclama sua presença. O desenho inscrito aparece. A princípio, é visto fortuita mente à medida que as sombras dos desenhistas interrompem a projeção da imagem. Pouco à diante, a camada de grafite supera a luz do projetor e o que se vê é só desenho, não mais imagem. As luzes se acendem. O jogo acaba. Toma-se fôlego. desenho.
A partir daqui estamos prontos para encenar. Nessa série, a imagem desaparece. Nada de condução lhe é externo ou projetado. Com exceção dos corpos que a executaram, nada além do que realmente está lá pertenceu à ação de desenhar. O desenho abre-se como convite sendo propriamente aquilo mesmo que nos guiará, no momento de sua contemplação. No papel, sustenta-se o vai-e-vem contínuo de uma linha, traçada, pacientemente, à aquarela, à quatro mãos, sobre uma superfície aquosa exigente até a sua sobre uma superfície aquosa exigente, até a sua saturação. De frente aos desenhos, o que temos, somos nós e os resquícios de um fazer. Insiste, então, a pergunta: o que pode nos dizer a mais o confronto do corpo observador com o corpo do desenho? Dado que a câmera, pretérita e mortuária, é a contraforma do desenho, este não pode ser outra coisa senão uma instância viva. Portanto, me submeto. Descalço meus sapatos. Retiro minhas meias. Com os pés nus, piso no terreiro. Minha pele sente o frio da galeria. Meus pés úmidos tocam a pele fina do piso da galeria. Aos poucos habito o molhado, para que, seguro, possa me lançar em confronto com o mundo. A vida, argumenta Ingold (2022b, p. 133), procede ao longo de linhas que crescem, em parte, se assemelhando ao movimento de um rio, conforme corta pela paisagem no seu caminho para o mar, em parte, como os brotos das plantas, conforme nascem para cima em busca da luz. Em contexto distópico, estar vivo parece um milagre.
Artistas Participantes:
Luiza Alcântara
Marcelino Peixoto